Recentemente visitei uma família quando um dos assuntos, discutidos na hora do jantar, tratava da herança que o meu amigo poderia receber dos seus pais ainda vivos.
O assunto se deu mais ou menos assim:
“Puxa vida! Estava tudo certo para a divisão da herança e a minha mãe resolveu não mais fazê-la. É isso que eu tenho esperado dos meus pais há anos e agora ela resolve não distribuir os bens da família. Será que eu terei que esperar que eles morram?!!”
Obviamente que isso soou como uma brincadeira no início, porém fui percebendo que o assunto era sério. Ele realmente estava decepcionado com a decisão da sua mãe e pior, completou dizendo que poderia ainda demorar muito até que eles morressem.
A perplexidade tomou conta de todo o meu pensamento - não conseguia sequer acompanhar os assuntos a partir daquela confissão, então, fiquei atónito e não mais consegui prestar atençao aos assuntos seguintes... e meditei.
É que naquele momento, resolvi, quase que compulsoriamente, fazer uma viagem no tempo.
Iniciei a minha viagem pelo passado, lembrei-me dos dias em que vi meu pai chegar em casa após um dia exaustivo de trabalho. Mesmo sendo uma pessoa esforçada, ele não teve a oportunidade de estudar e poder assim, usufruir de uma vida confortável. Sua sina o levou a se dedicar exclusivamente à nossa família e, tentando imaginar o que se passava em seus pensamentos, vi que a preocupação com a formação dos seus seis filhos não oferecia sequer um minuto de descanso à sua mente cansada. Pensar em si seria uma heresia na realidade que lhe sobrara, não havendo espaço sequer para guardar resquícios dos sonhos de criança que outrora firmaram seu semblante.
E minha mãe... naquele tempo não havia "chapinhas", dessas que as adolescentes usam para alisar os cabelos, mas mesmo tendo em sua penteadeira alguns produtos básicos de maquiagem... batom, pó-de-arroz... as oportunidades que a minha mãe tinha para se sentar em frente ao espelho e cuidar um pouquinho da sua aparência eram tão raras que posso me lembrar de cada uma delas em que pude ver.
Cabia à minha mãe a função de cuidar de cada centavo que meu pai conseguia trazer para nossa casa. Lembro-me que eram poucas as ocasiões em que tínhamos carne à mesa e, quando isso ocorria, minha mãe dividia os pedaços do bife em partes iguais para que cada filho tivesse o seu, e o detalhe que marcou nesta história foi que ela sempre cedia o seu pedaço de carne para o filho a quem percebia desejar um pouquinho mais.
Vidas inteiras entregues aos filhos como se não tivessem o direito de vive-las... viajar? – "não posso, com o dinheiro da viagem poderia comprar as roupas novas que as crianças estão precisando" e, brinquedos, nem pensar.
Estando diantes da necessidade de possuir o próprio teto, para assim deixar de pagar aluguel, com esforço acima do humano, os meus pais puderam guardar suas economias e pagar a prestação da casa onde morávamos. A casa que está guardada no meu coração, marcando a pureza de criança e trazendo à lembrança as brincadeiras que inventávamos no pé de Santa Bárbara, no gramado sob o pé de ameixa ou no fundo do quintal, onde papai plantava seu orgulho - sua horta verdinha, com seus doces moranguinhos e o produtivo mandiocal.
Foi lá que crescemos, oramos, brigamos às vezes e nos amamos à nossa maneira, onde o meu pai e a minha mãe preservaram à custa dos seus dias, o espírito da nossa família.
Esta casa muito simples, que poderia estar hoje como pivô de uma discussão se o assunto fosse partilha de herança, traz consigo a minha infância.
Tudo isso e muito mais veio à garganta, como uma erupção, que me explodiu no peito como um vulcão que, até então, se mostrava inativo. Percebi que fiquei a minha vida inteira cobrando dos meus pais coisas que nem me lembro mais, mostrando para mim o quanto fui mesquinho e por muito tempo. Pois tudo o que os meus pais me ofereceram representa agora uma avalanche de coisas boas, de momentos maravilhosos... eles me ofereceram uma família.
Aqueles poucos minutos em que precedia o jantar na casa dos meus amigos foram suficientes para passar em resumo toda a minha vida até aquele instante; e mais, minha viagem não parou ali, continuei na direção do meu futuro.
Hoje sou pai e, mesmo em diferente circunstância a que meus pais viveram, também sinto o quanto é difícil oferecer vida mais confortável aos filhos e poder oferecer-lhes algo melhor do que tivemos. Não quero sequer imaginar que as minhas filhas tenham que se humilhar tanto quanto precisei para poder construir honestamente as suas histórias.
Coloquei-me também no lugar dos pais daquele homem. Imaginei minhas filhas desejando o fim dos meus dias para se apossar das coisas que foram construídas não inutilmente, mas para que elas tivessem um pouco mais segurança e conforto comparado ao que eu tive.
Senti vontade de chorar, mas sei que ninguém iria entender o porquê das minhas lágrimas, por isso busquei desviar meu pensamento e me integrar na conversa como que me tornasse tirano dos meus próprios pensamentos. Mesmo porque acredito que somente eu assumi aquela idéia de forma tão profunda. Os outros a ouviram com a tranqüilidade de quem considera esta situação normal e do nosso quotidiano... ou talvez estejam se preparando para praticar uma história parecida, ou seja, tornando descartável a vida dos próprios pais.
Restou-me então, rezar e pedir que Deus compreendesse aquele coração tão incauto e frio para tentar transformá-lo e assim levá-lo a acreditar que as coisas deste mundo nos são dadas unicamente para administrá-las.
O sentimento de propriedade evidencia a ausência da fé, já que a necessidade de se sentir seguro neste mundo cala a promessa do cuidado do Pai.
Retornei então ao presente, mas agora de outra forma, porque o sentimento de gratidão me deixou uma forte vontade de abraçar meu pai e minha mãe e compartilhar com eles da liberdade que a renúncia ao apego lhes proporcionou e que marcou os anos dedicados à nossa família.
Agora sim, posso agradecer a herança que os meus queridos pais já me deixaram em vida: - saber que, neste mundo, a verdadeira liberdade está na prática do desapego.